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Canibalismo no Cinema

Por: Dino Lucas Galeazzi

Sub-gênero pouco conhecido do terror, o cannibal movie surgiu associado ao cinema de exploitation, tendo cenas apelativas de sexo e violência como principal chamariz para o público da década de oitenta. Com a chegada do novo milênio, filmes sobre canibalismo renovaram sua estética e linguagem, destacando-se no cenário underground. “Raw” (Grave, 2016), por exemplo, rejeita as convenções gran-guignolescas e as formulas engessadas do Cannibal Boom, sem, todavia, dispensar representações explícitas de uma violência simbólica para abordar questões socioculturais e/ou metafísicas.



No passado, desbravadores de um mundo ainda desconhecido, traziam relatos aterrorizantes de povos selvagens que praticavam o canibalismo. Que fosse parte de um ritual religioso ou que se tratasse de um mero ato alimentar, a sociedade ocidental, no ápice de seus avanços tecno-industrias, ouvia, atônita, histórias de terror acerca de tribos devoradoras de tribos. Lá onde terminavam certezas e seguranças do ser racional, no coração de uma selva inexplorada, pessoas comiam-se umas às outras.


Também na quietude aparente de uma comunidade dita avançada podiam ocorrer (e ocorriam) casos esporádicos igualmente atrozes: por algum motivo, vez ou outra, as rédeas de um dado indivíduo, as que seguravam pulsões obscuras, abjetas, rompiam-se, dando vazão a uma violência antropofágica primitiva.


Tratava-se de casos raros e extremos, obra de pessoas disturbadas à margem da civilização, tão absurdos que teriam servido de inspiração tanto para a narrativa de ficção, quanto para os roteiros de cinema, sobretudo no que diz respeito ao gênero terror.


Todavia, apesar da longa tradição por trás deste tipo de estórias, os cannibal movies teriam se consolidado enquanto subgênero cinematográfico somente a partir da década de ’80, após o controverso Cannibal Boom, período em que cineastas italianos como Umberto Lenzi e Ruggero Deodato, dentre outros, teriam feito sucesso graças a seus filmes de exploitation.


“Vivos Serão Devorados” (Mangiati vivi!, 1980) é um filme de terror canibal dirigido por Umberto Lenzi.


Uma vez vislumbrado o declínio do giallo e do faroeste spaghetti, um punhado de cineastas teria continuado a flertar com o splatter e o gore, ambientando suas histórias de terror não mais em ruas noturnas de cidades mediterrâneas à la mode, com belas mulheres perseguidas por assassinos mascarados, mas, sim, em florestas tropicais, à luz do dia, com tribos indígenas famintas de carne humana.


A moral da história, se assim a podemos considerar, é basicamente a mesma para todos os cannibal movies daquela época: após caírem vítimas de tribos canibais, ao final da película, as ditas pessoas civilizadas se revelavam bem piores de seus algozes, os selvagens.


Infelizmente, o motivo principal por trás do sucesso internacional destes filmes consistia na violência infligida aos animais, que, na maioria dos casos, era verídica. Portanto, é lícito pensar que o público corria atrás de obras como “Cannibal Holocaust” (1980) e “Cannibal Ferox” (1981) exclusivamente pelo prazer de chocar-se diante uma violência cada vez mais absurda e explícita, fascinado pelo excesso, pelo fato das películas serem o que havia de mais próximo aos snuff movies.


Talvez, o grande mérito do Cannibal Boom fora o de ter apontado, no mapa da sétima arte, o lugar específico ocupado pelos filmes sobre canibalismo: afinal, sem estas coordenadas, alguns cineastas da atualidade não poderiam se apropriar dos códigos ínsitos neste subgênero específico, que hoje, mais do que outros, é o que melhor serve para denunciar as mazelas de nossa sociedade.


O que percebemos no cenário atual é um crescendo de filmes que lidam com a incômoda temática do canibalismo, abordando-a, todavia, por um viés inovador, o que distingue este novo ciclo de terror canibal de seus antepassados.


Vale ressaltar que antes mesmo dos cannibal movies macarrônicos, as telonas já foram palco para inúmeros personagens canibais.


Pensemos em Sweeney Todd, por exemplo. Além do famoso musical de Tim Burton, o lendário e truculento barbeiro de Londres já havia sido adaptado para filme em três outras transposições, respectivamente em 1926, 1928 e 1936.



“Banquete de Sangue” (Blood Feast, 1963), dirigido por H. G. Lewis, é considerado o primeiro splatter do cinema.


Mas quem realmente forjou o molde do serial killer comedor de seres humanos teria sido nada mais e nada menos que H. G. Lewis, um dos pais fundadores dos splatter movies, graças ao seu “Blood Feast” (1963). O protagonista da película, Faud Ramses, foi precursor de inúmeros assassinos psicóticos, inclusive de Leatherface, membro da mais assustadora família de canibais do cinema, a família Sawyer.


Mestres de cerimônia em banquetes de carne humana.


O legado de Lewis está presente tanto em obras de culto do passado, como “Frightmare” (1974) de Pete Walker, quanto na personagem de Hannibal Lecter, mais conhecido como Hannibal the Cannibal, criado pela caneta do autor Thomas Harris, e eternizado por Anthony Hopkins em “O Silêncio dos Inocentes” (1991).




A lista é enorme, mas o objetivo do seguinte artigo não é o de propor uma cronologia de todos os filmes que já trataram deste assunto. O que nos interessa é o quadro geral, perceber um renovado compromisso do ciclo de terror canibal para com a realidade.


Diferente das tribos indígenas do Cannibal Boom, cujo canibalismo possuía conotações antropológicas, e, diferente de alguns psicopatas dos antigos splatter movies, cujo canibalismo só servia para torná-los mais assustadores, os canibais do novo milênio são alegóricos, uma conseqüência das disfunções sociais hodiernas.


Não se trata mais de algo errado, que está além do sistema social e do raciocínio lógico, como o sintoma de um desvio mental, ou o gesto brutal oriundo de uma tradição secular. O mais moderno impulso canibal é natural, reprimido, sim, mas ínsito à natureza humana, algo que pode ser despertado por influências psicossociais nocivas.


CARNE

“O canibalismo faz parte da humanidade” declarou a diretora francesa Julia Ducournau numa entrevista concedida ao jornal britânico The Guardian. “Algumas tribos o praticam ritualmente, sem sentir vergonha. Você tem essa sensação ao morder o braço de alguém por diversão, a de querer ir um pouco mais longe, mas não o faz por causa de seus preceitos morais. Esta coisa está em nós, mas, simplesmente, não a queremos enxergar. Então pensei, já que minhas personagens se sentem, no fundo, como monstros, eu queria que a audiência se sentisse como um monstro, e entendesse o que ela está fazendo. Por que somos todos monstros, na verdade”.




Cenas do filme “Raw” (Grave, 2016) — a descoberta de um instinto canibal por parte da protagonista coincide com a descoberta de si mesma.

 


Por essa perspectiva, entendemos o canibalismo em “Raw” (2016), seu primeiro longa-metragem, como uma forma da protagonista descobrir a si mesma.


Justine, caloura da faculdade de veterinária, é uma jovem rigorosamente pura: virgem, vegetariana e iludida.


Abandonar as restrições da casa e da família em prol de uma estadia no campus universitário não é exatamente a experiência agradável que ela, ou que qualquer um, poderia esperar. Quando não é pressionada pelas exigências do mundo acadêmico, Justine há de lidar com a violência e os absurdos da vida adulta: não há possibilidade de se atar laços de amizades sinceras, pois há espaço somente para relações fugazes em festas sexualmente agressivas; não há como uma pessoa manifestar a si mesma, uma vez que é silenciada pelos dogmas dos veteranos, as regras de quem manda; e, sobretudo, não existe refugio, pois o isolamento é desconfortável, com todo aquele desejo sexual que não pode ser sufocado sozinho, por debaixo dos lençóis.


Junto ao apetite sexual, surge uma fome carnívora, a qual cresce até deformar-se, tornando-se socialmente abominável, canibal.


Uma Justine que come carne de animais vai contra as normas familiares, impostas pelos pais. Uma Justine que devora outros seres humanos vai contra as leis do Estado, impostas pela sociedade.


“Raw” é um dramático coming-of-age banhado à sangue.


SEXUALIDADE

Além do extremo realismo, outro traço característico dos mais recentes cannibal movies é, justamente, a presença de um discurso crítico para com a sexualidade, ou melhor, para com a exploração sexual.


Afinal, não poderia ser de outra forma: filmes de exploitation e pornografia, ambos relegados ao status de paracinema, são formas de arte perigosas, contrárias ao dito bom-gosto por serem termômetros sociais, pois dizem respeito da forma como o homem lida com seu próximo.


A este propósito, dizia o autor J. G. Ballard na introdução de seu romance “Crash”: “[…] Em certo sentido, a pornografia é a forma mais política de ficção, pois aborda como usamos e exploramos uns aos outros, do modo mais urgente e impiedoso.”


Entre 2016 e 2017, além de “Raw”, tivemos outros quatro filmes que abordaram a questão do canibalismo, e todos eles traziam um sub-texto sexual, uma crítica ao sexismo.







“XX” (idem, 2017), “Fragmentado” (Split, 2016), “The Bad Batch” (idem, 2016), “Demônio de Neon” (The Neon Demon, 2016) — filmes recentes que abordam a temática do canibalismo. Há neles uma violência hiper-realística e um forte sub-texto sexual para abordar questões profundas, como as mazelas psico-sociais hodiernas.


O primeiro capítulo de “XX” (2017), filme antológico de terror dirigido exclusivamente por mulheres, possui uma seqüência onírica em que uma mãe se vê devorada pelo marido e pelos filhos durante um jantar, o que evidencia a exclusão da figura materna das principais dinâmicas familiares, resultado, talvez, da mais recente emancipação feminina.


Em “Fragmentado” (2016) de M. Night Shyamalan, a vigésima quarta personalidade do vilão, A Fera, uma vez liberada, devora duas das três meninas que foram mantidas como reféns ao longo do filme, dando vazão aos impulsos reprimidos de alguém que descobrimos ter sido vítima de abusos sexuais durante a infância.


“The Bad Batch” (2016) de Ana Lily Amirpour se passa num futuro distópico em que as pessoas que são consideradas danosas para a sociedade americana são exiladas num tal de Lote Defeituoso, onde uma das tribos que o habitam pratica o canibalismo. Arlen, a protagonista do filme, é capturada e parcialmente devorada.


A jovem e inocente e belíssima Jesse, de “The Neon Demon” (2016), ingressa no mundo da moda de uma Los Angeles glamourosa e sombria. Suas adversárias, num ato de inveja extremo, decidem interromper sua carreira ascendente, canibalizando o cadáver de Jesse.


Diferente da Justine de “Raw”, que é o agente ativo no ato canibal, as protagonistas dos filmes acima mencionados são o prato principal para o banquete de assassinos impiedosos.


O que isso significa? Qual a relação entre mulheres e comidas?

COMIDAS

Ao que tudo indica, a nova safra dos filmes canibais parece pôr em cena a conotação sexual que o povo brasileiro atribui ao verbo comer.

Não somente equalizamos o ato da ingestão alimentar à possessão sexual do homem para com a mulher, como também operamos num plano ideológico ao impor uma deformação no corpo feminino, estabelecendo parâmetros que remetem a alimentos: pensemos nas mulheres-frutas popularizadas pela tevê, ou no mercado publicitário que enaltece um tipo de mulher dita gostosa, mulher-filé, recorrendo a termos como coxuda, peituda, etc.

Como evidenciado pelo antropólogo Roberto DaMatta no ensaio “Sobre comidas e mulheres”, aquilo que pode nos parecer uma mera curiosidade lingüística é, in vero, uma perigosa arma de dominação semiótica, que desnuda a exploração da mulher na sociedade patriarcal brasileira, a qual de pouco difere das demais do dito mundo civilizado ocidental.






[…] o ato sexual pode ser traduzido como um ato do “comer”, abarcar, englobar, ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é (ou foi) comido. A comida, como a mulher (ou o homem, em certas situações), desaparece dentro do comedor — ou do comilão.

Isto é, a metáfora sexual da comida denota uma extensão sexista da hierarquização social.


Mesmo na intimidade, mesmo no confortável torpor da cama, vige a desigualdade: o homem é quem come, e a mulher é quem é comida.


A relação sexual e o ato de comer, portanto, aproximam-se num sentido tal que indica de que modo nós, brasileiros, concebemos a sexualidade e a vemos, não como um encontro de opostos e iguais (o homem e a mulher que seriam indivíduos donos de si mesmos), mas como um modo de resolver essa igualdade pela absorção, simbolicamente consentida em termos sociais, de um pelo outro.

Mas o discurso, obviamente, não está limitado ao solo lingüístico brasileiro. O verbo “to fuck”, por exemplo, de origem anglófona, além da óbvia alusão sexual, remete a uma significação não-vulgar, indicando o ato de ocasionar o mal a alguém, arruinando-o.


Também neste caso, não surpreende que seja o homem a cumprir o papel ativo, o do fodão, o do fodedor, enquanto relega-se a mulher ao papel passivo, o da fodida, o de quem é arruinada pelo outro.


Retornemos, então, aos filmes mencionados acima.






Sequência onírica do episódio “The Box”, do filme “XX”. No pesadelo, a mãe é canibalizada pelo marido e pelos filhos em prol de uma ordem patriarcal que falta à realidade.


No pesadelo do primeiro episódio do filme “XX”, o pai serve aos filhos pedaços de carne de uma mãe ausente, distante, que não cumpriu direito a função de dona-de-casa, portanto alheia ao segredo que matou os membros de sua família.





Tanto a protagonista quanto o antagonista de “Fragmentado” foram vítimas de abusos durante a infância. Lá onde a primeira supera o trauma através de sua inesgotável resiliência, o segundo dá vazão a uma violência psico-sexual por meio de homicídios canibais.


A personagem feminina Casey Cook de “Fragmentado”, assim como o inimigo que a aprisionou, também fora vítima de abusos na infância. Porém, entre os dois, somente Kevin Wendell Crumb, ao tornar-se A Fera, alcança a catarse ao comer as colegas da primeira.


 



Em “The Bad Batch”, Arlen tem braço e perna direitas devoradas por um casal canibal. De forte impacto emotivo, a primeira metade do filme remete ao sub-gênero de ‘rape and revenge’, com a diferença de ter um ato canibal no lugar do estupro, e com uma jornada de amadurecimento no lugar da simples vingança.


 


O canibalismo perpetrado contra Arlen em “The Bad Batch” ressoa violento e humilhante como um estupro, algo que a marcará para sempre. Mais que uma busca pela vingança, sua jornada coincide com a superação do trauma, com o amadurecimento.


 





Em “The Neon Demon”, Ruby, rejeitada por Jesse, sublima seus impulsos sexuais por meio de um ato canibal.


Apesar de serem mulheres, as canibais de “The Neon Demon” agem em função da frustração sexual vivida por Ruby, uma lésbica apaixonada por Jesse. Rejeitada, ela busca satisfazer-se devorando a modelo.



Porém, o filme que melhor traduz em imagens a tese de DaMatta é “Trouble Every Day” (2001), obra seminal da diretora francesa Claire Denis, que lançou as bases tanto para o New French Extremity, movimento cinematográfico transgressivo e controverso, quanto para o mais recente ciclo de cannibal movies.



O doutor Shane Brown e sua esposa, June, visitam Paris durante a lua de mel. Shane guarda um segredo e afasta-se cada vez mais de June em busca do ex-colega Léo Sémeneau e da mulher dele, Coré, pela qual parece estar obcecado.


Léo abandonou a carreira de neurologista e tornou-se um médico genérico. Sua rotina consiste em ir ao trabalho toda manhã, após trancar sua esposa no quarto, na esperança de que ela não escape para saciar seu desejo por sexo e carne humana.


No final do filme, descobrimos que Shane e Coré estão manifestando os sintomas de uma doença contraída em uma experiência de laboratório feita tempo atrás na África: os efeitos colaterais incluem uma libido desenfreada, acompanhada por uma fome canibal.




Coré, vivida por Béatrice Dalle, possui uma beleza agressiva, ao mesmo tempo rude e sensual. Seu canibalismo, bem como a conseqüente promiscuidade, é algo errado, socialmente inadmissível. Em vista disso, as chamas que a devoram parecem corolário de uma intervenção divina.


Shane, interpretado por Vincent Gallo, tenta ter um relacionamento sexual com a esposa, até dar-se conta de que isso seria errado: June, bela e inocente, não é uma mulher que deve ser “comida”. O sexo poderia corrompê-la, matá-la, o que destruiria o casamento e a carreira de um médico de sucesso.


A solução: Shane seduz a empregada do hotel em que está hospedado e, enquanto transam, a devora.


Afinal, Christelle, a vítima, nada mais seria do que o sonho molhado de um burguês sexualmente reprimido, o qual a imagina como sendo uma mulher de rua, uma presa fácil.



Ora, a mulher da rua, essa que é a comida de todos, é algo muito diferente […]. Em contraste com a mãe, a virgem e a boa esposa, ela surge como aquela mulher que pode literalmente causar indigestão nos homens, provocando sua perturbação moral. Dessas mulheres deve-se fugir […] mas sem elas, reza paradoxalmente a mesma ética, o mundo seria insosso como uma comida sem sal.




Christelle é aquela comida indigesta, mas deliciosa, à qual o pater familias recorre, vez ou outra, para fugir à rotina da comida caseira.



Na seqüência final, Shane, após tomar um banho purificador, abraça June, cujo olhar revela a estoica aceitação da infidelidade — aqui vista como uma doença — do marido.


Como na maioria de seus filmes, Claire Denis denuncia as mazelas de uma França supostamente moderna, e, em “Trouble Every Day”, sua crítica é feroz, voltada ao assunto incômodo da discriminação sexual.


CRU & COZIDO

DaMatta cita o antropólogo Claude Lévi-Strass, uma vez que este último chamou a atenção para dois processos naturais, o cru e o cozido, os quais são, de fato, modalidades que nos permitem falar em transformações sociais, não somente estados em que podemos encontrar os alimentos.










Para a Justine de “Raw”, comer um pedaço de bife cru é tanto uma necessidade fisiológica quanto um ato de rebelião. Um alimento que não é cozido é também um alimento que não foi processado por códigos sociais — comer carne crua significa regressar a um estado de selvageria primordial.



Quando vemos a Justine de “Raw” comer um pedaço de bife cru, quase que preparando o paladar para a carne humana, assistimos não a uma mera cena apelativa, mas, sim, a um ato de rebelião, um indivíduo regressando a um estado de selvageria primordial.


Muitos são os códigos dos quais a sociedade utiliza-se para educar o ser humano, tornando-o um cidadão, um mecanismo da engrenagem social. Um destes códigos é, justamente, o da comida: ao longo da história, graças a rituais cada vez mais complexos, e com a inserção de tecnologias e de processos fisiológicos e químicos para a sua realização, a alimentação acabou tornando-se uma linguagem social rica, profunda, um verdadeiro e próprio espelho social.


Não surpreende que utilizemos termos culinários para equacionar o mundo a nossa volta, associando as mulheres com a comida, o doce com o feminino e o cru, assim como o salgado e o indigesto, ao que é cruel, um lado da vida que fora separado da comunidade.


Uma pessoa é definida pela forma como se alimenta.


Não fora Hipócrates a dizer que nós somos o que comemos?


Comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele que ingere.


 



Cena emblemática do filme “The Woman — Nem Todo Monstro Vive na Selva” (The Woman, 2011): as mulheres aceitam passivamente a escolha do pater familias de aprisionar e ‘reeducar’ uma selvagem.



Em “The Woman” (2011), uma mulher selvagem é capturada por Chris Cleek, um pai de família extremamente violento e machista. Ao descobrir que sua prisioneira é uma canibal, Chris toma uma decisão: fazer dela uma pessoa civilizada.


Com base numa história de Jack Ketchum (o mesmo que inspirou o já citado “The Box” do antológico “XX”), o diretor Lucky McKee soube subverter o conceito inaugurado pelo Cannibal Boom: aqui não temos um punhado de civis capturados por uma tribo canibal, mas sim uma selvagem inserida no bem mais violento mundo civilizado.



A principal etapa no processo de ‘reeducação’ da selvagem consiste na imposição de uma dieta socialmente aceita.



 


Certamente, violência é o que não falta num filme como “The Woman”, mas esta não necessita do sangue e do gore para manifestar-se: obrigar a selvagem a comer uma papinha cozida é tão cruel quanto o estupro que ocorrerá em seguida.


Outro acerto: a selvagem está presa na adega da casa. Não num quarto qualquer, não no sótão, não na garagem. Na adega. Trata-se de um lugar subterrâneo, úmido e sombrio, geralmente associado, tanto na literatura quanto no cinema norte-americano, ao inconsciente.


E, de fato, nestes renovados cannibal movies, o ato canibal traz à tona reflexões morais e psicológicas de certo peso.


Deixando de lado a crítica social auto-explicativa do “The Green Inferno” (2013) de Eli Roth, vale a pena apontar para os privilégios de um filme subestimado como “Bone Tomahawk” (2015) de S. Craig Zahler. Aparentemente simples e superficial, este cannibal western conta a história de um grupo de homens que, guiados pelo xerife Franklin Hunt, atravessa o deserto para resgatar as mulheres da cidade de Bright Hope, raptadas por um clã de indígenas canibais.



Os selvagens, neste caso, são muito mais que meros trogloditas violentos. Um nativo americano adverte nossos heróis do perigo: estes índios são diferentes dos demais, pois eles não possuem uma linguagem.


É a tribo do que não é dito, do que deve ser silenciado.




Uma possível leitura do filme “Rastro da Maldade” (Bone Tomahawk, 2015) considera a tribo canibal como sendo uma manifestação da tensão sexual latente entre dois personagens do filme, pois ambos anseiam pela mesma mulher — os impulsos destrutivos do protagonista são sublimados na violência canibal perpetrada pelos índios.


 



Entre os inúmeros desafios que os heróis do mundo civilizado deverão enfrentar, o pior reside no duelo sexual entre o caubói Arthur O’Dwyer e o mulherengo John Brooder: os canibais nada mais seriam que uma manifestação do conflito entre estes dois, pois ambos lutam pelo amor da mulher de O’Dwyer.


 



“Baskin” (idem, 2015) é um filme de terror canibal dirigido por Can Evrenol.

Indo um pouco mais a fundo, podemos citar o belíssimo cannibal movie “Baskin” (2015) de Can Evrol. Nesta pérola do terror turco, um grupo de policiais inicia, acidentalmente, uma jornada para o inferno, onde serão punidos pelos seus pecados.


E qual seria essa punição?


Mesclando pesadelos da infância com dúvidas e medos da vida adulta, “Baskin” nos remete a um inferno dantesco, em que os pecadores são punidos segundo a temível lei do contrappasso.


Contrappasso, do latim contra e patior: sofrer o contrário.



Cena do filme “Dante’s Inferno” (L’Inferno, 1911) em que os personagens Dante e Virgilio se deparam com o fantasma do barão Bertran de Born, punido pela lei do contrappasso.


 


Em um dos noves círculos do Inferno de Dante Alighieri, encontremos a figura de Bertran de Born, um dos poucos personagens que faz questão de explicar ao poeta florentino o motivo por trás de sua punição: já que em vida ele semeou discórdia entre um pai e um filho, agora sua cabeça encontra-se separada do corpo.


A punição diabólica à qual são submetidos os policiais do filme parece seguir a mesma lógica perversa de Dante: eles são literalmente devorados por um grupo de seres monstruosos, deformados, numa orgia de sexo e sangue.


Não poderia ter sido de outra forma.




Em “Baskin” (idem, 2015), a carne abre e fecha o mesmo arco narrativo — o misterioso personagem vestido de preto que traz a carne ao restaurante é o mesmo que canibalizará os corpos dos policiais na última parte do filme. Portanto, somos levados a pensar que o grupo protagonista esteja comendo a si mesmo.



Logo nos primeiros frames da película, um vulto vestido de preto (que descobriremos ser uma espécie de diabo) chega ao restaurante em que os policiais estão jantando, trazendo consigo as carnes que eles irão comer.



Os policiais abusam do poder. Eles exploram o próximo, subjugam o corpo de terceiros, praticam violência na carne dos outros — em consequência disso, a punição neles infligida será igualmente corporal, visceral. Simbolicamente, suas carnes queimam na brasa, antecipando a descida para o inferno.



Nossos defensores da lei são arrogantes e cruéis, passam o tempo fazendo baderna e piadas sexistas. Reacionários, um deles sente-se ofendido e reage de forma violenta, espancando um jovem garçom do local.


A conta pelo jantar não é paga.




A lei do contrappasso é aplicada: um a um, os personagens são punidos pelos seus pecados. Apo, o guloso do grupo, é devorado por entidades deformes, demoníacas; Yavuz, luxurioso e rancoroso, tem seus olhos perfurados antes de ser obrigado a fazer sexo com uma criatura asquerosa; o chefe Remzi, soberbo até o último momento, tem sua garganta cortada pelo diabo em pessoa, que se banha em seu sangue.



 


Quem, em vida, aproveitou-se de seus poderes para comer à vontade (tanto pelo viés denotativo, quanto pelo conotativo), pela lei do contrappasso, na morte, deverá ser comido pelos outros.


Pelo outro lado, Arda, protagonista do filme e novo membro da equipe, diferente de seus colegas, ainda não sujou as mãos com o sangue dos mais fracos e dos pobres, mas sente-se atormentado por uma espécie de lembrança onírica do passado: um fantasma apareceu em seu quarto na noite em que ele descobriu a vida sexual da mãe.








O trauma vivido por Arda na infância gira em torno de uma porta fechada — a descoberta da vida sexual da mãe. A obtenção de uma chave durante uma de suas alucinações é o que lhe serve para derrotar o diabo, evitando, assim, de ser punido pelos seus pecados.




 


O Inferno materializa seu primeiro contato com a perversidade do ser humano. Tanto que, uma vez superado o trauma vivido na infância, Arda consegue escapar. Pelo menos em aparência, até o filme dar uma volta, fechando uma fita de Möbius perfeita: não se pode fugir à lei do contrappasso.


É curioso perceber como, respectivamente, a tensão sexual em “Bone Tomahawk” e o medo sexual em “Baskin”, não podendo serem traduzidos em palavras, são transfigurados em algo monstruoso, deforme, mas, sobretudo, canibal.

LISTA

Mesmo que algumas das considerações feitas ao longo do texto possam parecer forçadas, não podemos ignorar, nem mesmo negar o fato de que filmes de terror que tratam da temática do canibalismo, isto é, os cannibal movies, têm ganhado um espaço cada vez maior no cenário mais recente do gênero horror, renovando sua estética e linguagem.

Por mais que alguns deles sejam de qualidade duvidosa, todos, de forma inconsciente ou não, falam a respeito de um mal social que, infelizmente, está longe de ser resolvido.






Segue uma lista de filmes recentes sobre canibalismo.


TROUBLE EVERY DAY (2001)


THREE… EXTREMES (2004)


THE LAST SUPPER (2005)


FRONTIER(S) (2007)


SWEENEY TODD: THE DEMON BARBER OF FLEET STREET (2007)


HUNGER (2009)


OFFSPRING (2009)


SOMOS LO QUE HAY (2010)


THE WOMAN (2011)


HIDDEN IN THE WOODS (2012)


THE GREEN INFERNO (2013)


WE ARE WHAT WE ARE (2013)


EAT (2014)


HEADLESS (2015)


BONE TOMAHAWK (2015)


BASKIN (2015)


THE BAD BATCH (2016)


SPLIT (2016)


THE NEON DEMON (2016)


RAW (2016)


XX (2017)


O CLUBE DOS CANIBAIS (2018)


 











Matérias
https://www.cinehorror.com.br/materias/canibalismo-no-cinema?id=347
| 6354 | 02/07/2019
Considerações a respeito dos recentes filmes de horror canibal
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